segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

GRANDE SERTÃO: A VIAGEM

Algumas viagens entram para a história, outras entram também para a literatura. Foi o que aconteceu com o escritor João Guimarães Rosa, quando, há 70 anos, em maio de 1952, ele se lançou numa empreitada pelo sertão mineiro que marcaria sua vida e sua obra.
Acompanhado de oito vaqueiros e levando 300 cabeças de gado, percorreu em dez dias os 240 quilômetros que separam Três Marias e Araçaí, na região central de Minas Gerais, sua terra natal. Trazia amarrada ao pescoço uma caderneta, onde anotava tudo que via e ouvia - as conversas com os vaqueiros, as sensações, as dificuldades e tudo que brotasse daquele mundo que ele reencontrava depois de anos vivendo como diplomata no exterior.
As cadernetas, hoje parte do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, foram reunidas em dois diários, que Rosa chamou de A Boiada 1 e A Boiada 2. As anotações seriam utilizadas como elementos de suas próximas obras - entre elas, Corpo de Baile (lançado em 1956), Tutaméia (de 1967) e Grande Sertão: Veredas (1956).
No dia 16 de maio, o escritor chegava à fazenda Sirga, de seu primo Francisco Moreira, em Três Marias. Três dias mais tarde, a boiada partiria para a viagem, fazendo seu pouso em várias fazendas e vilarejos da região.
Rosa fez questão de acompanhar o dia-a-dia dos vaqueiros em tudo, comendo da mesma comida - carne-seca, toucinho, feijão e arroz com pequi - e dormindo nos mesmos locais. Em Barreiro do Mato, por exemplo, teria dormido dentro de uma grande forma de rapadura, um enorme tacho côncavo, e em vários outros locais passou a noite em colchões de palha de milho, comuns naquela época.
Já próximo a Cordisburgo, cidade em que nasceu e etapa final da viagem, a comitiva teve um encontro com uma equipe da revista O Cruzeiro, que cobria a viagem do já famoso autor de Sagarana, lançado em 1946.
As obras de Rosa possuem uma infinidade de referências diretas e indiretas à viagem de 1952. A principal delas está em Corpo de Baile, mais especificamente na novela "Uma Estória de Amor", inspirada na vida de Manuel Nardy, um dos oito integrantes da comitiva. Ele aparece transfigurado no personagem de Manuel Jesus Rodrigues, o Manuelzão. As semelhanças vão além do nome: estão em acontecimentos da vida do vaqueiro.
Outro vaqueiro que se destacou durante a viagem foi João Henrique Ribeiro, o Zito. Embora não tenha ficado tão famoso quanto Manuel, era Zito quem seguia o tempo todo ao lado do escritor.
Assumiu as funções de guia e de cozinheiro da tropa e tirava quase todas as dúvidas de Guimarães Rosa. Embora não tenha resultado na criação de um personagem, a relação entre Zito e o escritor também teve seu destaque na obra.
A perspicácia do vaqueiro chamou tanto a atenção de Rosa que, anos mais tarde, ele o homenagearia em Tutaméia, lançado no ano da morte do escritor. Em um dos quatro prefácios, Guimarães Rosa transcreve trechos de conversas com o vaqueiro e elogia sua inteligência e criatividade.
Dono de uma memória prodigiosa, Zito guardou detalhes da viagem de Guimarães Rosa que ajudaram a reconstituir cada passo da aventura vivida pelo escritor – incluindo nomes, lugares e datas. “Ele queria saber de tudo. Se visse aquele pau ali, queria saber o nome daquele pau. Se ouvisse uma conversa, queria saber do que a gente falava. E ia escrevendo tudo nas cadernetas que levava penduradas no pescoço”, disse, em 2001.
Segundo o vaqueiro, Rosa teria dito que pagaria seus estudos no Rio de Janeiro, proposta que ele recusou. “Queria mesmo era ser vaqueiro”. Zito morreu aos 65 anos, em 2002, em Três Marias. Foi o penúltimo dos oito vaqueiros da tropa a morrer – o último foi Sebastião Leite, em 2005.

*João Correia Filho.

R E M I N I S C Ê N C I A

Z I R A L D O

Nasci numa pequena cidade de Minas. Até aí nada demais. Muita gente nasce em cidades pequenas, distantes e quietas. Seria feliz, de qualquer maneira, se quem lê neste instante pudesse saber a alegria que existe em se nascer num lugar assim, em que as ruas pequenas e estreitas, as altas palmeiras, a água macia da chuva que cai sempre, as muitas estrelas e a lua, as pedrinhas das calçadas, a meninada, a carteira da sala de aula, a mestra e mais uma quantidade destas lembranças simples sejam, mais tarde, influências reais na vida da gente.
Na vida de quem, afinal, preferiu enfrentar a cidade grande: as águas desse mar, a luz dessas lâmpadas frias, a sala fechada, triste e sem perspectivas em que se ganha a vida, a cadeira quente e insegura das tardes de ir e vir — pura fadiga — das empresas, a luta, a dura luta de ser alguém, um peixe grande em mar estranhamente grande. A verdade é que, um dia, a pensar e refletir na grama macia da pracinha da matriz, a criança decidiu sair.
E a estrada se abriu a sua frente. Vir era uma idéia. Fixa. Caminhar era fácil.
A chegada: a rua imensa, as buzinas, as luzes, sinal verde, aquela cidade grande, grande ali, na sua frente. Cada face, cada ser que passava — pra lá e pra cá — inquietamente, tanta gente, suada, apressada, sem alegria, sem alma, a alma cerrada, enrustida, cada triste surpresa era a chegada.
Cheguei. Um táxi. A mala. As esquinas. Está bem, mas, que fazer? Sentei e pensei. Pela janela da casa alta vai a vida. Seria a vida? E disse a primeira frase na cidade grande, as primeiras palavras diante da grande luta e as palavras eram: Meu Deus, que saudade! E nem um dia me separava da pracinha da matriz. Cada dia que, a seguir, vi passar, esqueci.
Diante da máquina, neste instante, há uma distância imensa entre aquele dia na missa cantada na minha igrejinha e este dia em que, diante de mim, diante de minha mulher e da minha casa feita de cidade grande, minhas filhas brincam de ser gente grande.
E elas. Que vai ser delas? Sem palmeiras, sem um pai de ar grave; sem entender a chuva a cair em jardins humildes, nas margaridas branquinhas; sem entender de lua e de estrelas — que céu aqui, pra se ver nem se vê —, sem brincar na lama das ruas, a lama das chuvas, casca de palmeira, descer as barracas, nadar sem mamãe saber, nas águas escuras, fim de quintal, quintal, quintal? sem quintal? pedrinha de calçada, marcar a canivete sua inicial na carteira da sala. Ainda bem que nasceram meninas.
Já é diferente. Será que é? Sei lá. Entre a chegada e este instante, lembrança nenhuma. Sei que cheguei.
E sei mais: que esta página está é uma grande besteira, dura de cintura, sem graça, uma m... Já se vê que quem nasceu para caratinguense nunca chega a Rubem Braga. E também tem mais: quem é capaz de escrever uma página literária decente — igual a essa — sem usar uma vez sequer a letra O?

─ Crônicas Mineiras, Editora Ática, 1984.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

O FALSO DEUS DO NACIONALISMO

*Martin Luther King Jr.

A época que vivemos é aquela em que os homens se afastaram do Deus Eterno ─ o Criador do Universo  e decidiram adorar no santuário do deus do nacionalismo.
Estamos todos já familiarizados com o credo desta nova religião: ela afirma que cada nação é uma unidade soberana e absoluta, que não reconhece nenhum controle, salvo sua própria vontade independente. A palavra de ordem desta nova religião é: “Meu país está certo (*à direita) ou errado".
Esta nova religião tem seus profetas e pregadores bem conhecidos. Na Alemanha, foi pregado por Hitler; na Itália, foi pregado por Mussolini. E nos Estados Unidos está sendo pregado pelos McCarthys e os Jenners, pelos defensores da supremacia branca e por movimentos como o "America First".
Não se pode adorar este falso deus do nacionalismo e o Deus do cristianismo ao mesmo tempo. Os dois são incompatíveis e toda a dialética da Lógica não pode fazê-los existir juntos. Nós devemos escolher a quem serviremos.
Continuaremos a servir o falso deus que coloca a soberania nacional absoluta em primeiro lugar ou serviremos ao Deus para quem não há leste nem oeste?
Será que continuaremos a servir ao falso deus da ganância imperialista ou serviremos ao Deus que faz do amor a chave que abre a porta da paz e da segurança?
Continuaremos a servir o falso deus do preconceito racial ou serviremos ao Deus que fez de um só sangue todos os homens para habitar a face da Terra?
Precisamos de vozes proféticas dispostas a clamar contra o falso deus do nacionalismo.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

FILATELIA Standard/T

1975/2025 - 50 ANOS DE COLECIONISMO

PERDENDO MINHA RELIGIÃO (EM TROCA DA IGUALDADE)


Tenho sido um cristão praticante por toda minha vida e um diácono e professor de Bíblia por muitos anos. Minha fé é uma fonte de vigor e conforto para mim, como o são crenças religiosas para centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo. Assim, minha decisão de romper minhas ligações com a Convenção Batista do Sul (dos Estados Unidos), depois de seis décadas, foi dolorosa e difícil. 
Foi, porém, uma decisão inevitável quando os líderes da Convenção, citando alguns versículos bíblicos cuidadosamente selecionados e reivindicando que Eva foi criada só depois de Adão e foi responsável pelo pecado original, determinaram que mulheres precisam ser “submissas” a seus maridos e proibidas de servir como diáconas, pastoras ou capelãs no serviço militar.
      Essa visão de que mulheres são de algum modo inferiores aos homens não está restrita a uma religião ou crença. As mulheres são impedidas de desempenhar um papel pleno e igual em muitas crenças. Nem, tragicamente, sua influência cessa nos muros da igreja, da mesquita, da sinagoga ou do templo. Essa discriminação, injustificadamente atribuída a uma Autoridade Mais Elevada, tem conferido a razão ou desculpa para negar a mulheres direitos iguais mundo afora por séculos.
        Na sua forma mais repugnante, a crença de que mulheres precisam estar subjugadas aos desejos de homens legitima escravidão, violência, prostituição forçada, mutilação genital e leis nacionais que não reconhecem o estupro como crime. Mas também custa a muitas milhões de meninas e mulheres o controle sobre seus corpos e vidas, e continua a lhes negar um acesso justo à educação, à saúde, ao emprego e à influência dentro de suas próprias comunidades.
        O impacto dessas crenças religiosas afeta cada aspecto de nossas vidas. Elas ajudam a explicar por que em muitos países meninos são educados antes de meninas; por que a meninas lhes é dito quando e com quem devem se casar; e por que muitas enfrentam riscos enormes e inaceitáveis na gravidez e no parto porque suas necessidades básicas de saúde não são atendidas.
Em algumas nações islâmicas, as mulheres têm seus movimentos restringidos, são punidas por permitirem a exposição de um braço ou tornozelo, excluídas da educação, proibidas de dirigir um carro ou de competir com homens por um emprego. Se uma mulher é estuprada, ela é frequentemente punida do modo mais severo como sendo a parte culpada no crime.
O mesmo pensamento discriminatório se encontra no continuado fosso entre gêneros e do fato de que ainda tão poucas mulheres estão em postos públicos no Ocidente. A raiz desse preconceito se encontra profundamente em nossas histórias, mas seu impacto é sentido a cada dia. Não são apenas mulheres e meninas que sofrem. Isso prejudica a todos nós. A evidência mostra que investir em favor de mulheres e meninas traz enorme benefício à sociedade. Uma mulher educada tem filhos mais saudáveis. Ela é mais propensa a enviá-los à escola. Ela tem renda mais elevada e investe o que ganha em sua família.
Para qualquer comunidade simplesmente é profundamente prejudicial discriminar metade de sua população. Precisamos desafiar essas atitudes e práticas de interesses egoístas e ultrapassados – como estamos vendo ocorrer no Irã onde mulheres estão à frente da batalha pela democracia e pela liberdade. 
Eu entendo, porém, por que muitos líderes políticos podem ser relutantes em pisar nesse terreno minado. Religião e tradição são áreas poderosas e sensíveis quando são desafiadas. Mas meus colegas Anciãos (Elders) e eu, que viemos de muitas crenças e panos de fundo, já não precisamos nos preocupar em obter votos ou evitar controvérsias – e estamos profundamente comprometidos em desafiar a injustiça onde quer que a enxerguemos. 
O Elders é um grupo independente de líderes globais, congregados pelo ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, com o intuito de colocar sua influência e experiência a serviço da construção da paz, de ajudar a abordar as grandes causas do sofrimento humano e a promover os interesses comuns da humanidade. Nós tomamos a decisão de chamar atenção particular à responsabilidade de líderes religiosos e tradicionais em garantir igualdade e direitos humanos e recentemente publicamos uma declaração que reza: “A justificação da discriminação contra mulheres e meninas em base à religião ou tradição, como se fosse prescrita por uma Autoridade Mais Elevada, é inaceitável.”
Conclamamos a todos os líderes a confrontar e mudar ensinamentos e práticas danosas, não importa o quão arraigadas, que justificam discriminação contra mulheres. Pedimos, em especial, que líderes de todas as religiões tenham a coragem de reconhecer e enfatizar as mensagens positivas da dignidade e da igualdade que todas as maiores crenças mundiais compartilham.
Os versículos cuidadosamente selecionados encontradiços nas Escrituras Sagradas para justificar a superioridade de homens pertencem mais a tempo e lugar – e à determinação de líderes masculinos de se aferrar à sua influência – do que a verdades eternas. Excertos bíblicos semelhantes poderiam ser encontrados para apoiar a aprovação da escravidão e a aquiescência tímida a governantes opressores. 
Sou familiar também a descrições vívidas nas mesmas Escrituras, em que mulheres são reverenciadas como líderes preeminentes. Durante os anos da Igreja Cristã antiga, mulheres serviram como diáconas, sacerdotisas, bispas, apóstolas, mestres e profetas. Apenas no quarto século líderes cristãos dominantes, todos homens, tergiversaram e distorceram as Sagradas Escrituras para perpetuar suas posições ascendentes no interior da hierarquia religiosa.
A verdade é que líderes religiosos masculinos têm tido – e ainda têm – a opção de interpretar os ensinamentos sagrados seja para exaltar, seja para subjugar mulheres. Em base a seus próprios propósitos egocêntricos, eles têm esmagadoramente escolhido a segunda alternativa. Sua escolha continuada proporciona o fundamento ou a justificação para muito da ampla perseguição e abuso de mulheres ao redor do mundo. 
Isso constitui uma clara violação não apenas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas também dos ensinamentos de Jesus Cristo, do Apóstolo Paulo, de Moisés e dos profetas, Maomé, e os fundadores de outras grandes religiões – todas as quais têm chamado a tratamento apropriado e equitativo de todos os filhos e filhas de Deus. É tempo de termos a coragem de desafiar essas visões. 

*Jimmy Carter (The Observer, 2009).