quarta-feira, 25 de junho de 2025

A B I G A I L

Certo homem de Maom, que tinha seus bens na cidade de Carmelo, era muito rico. Possuía mil cabras e três mil ovelhas, as quais estavam sendo tosquiadas em Carmelo. Seu nome era Nabal e o nome de sua mulher era Abigail, mulher inteligente e bonita; mas seu marido, descendente de Calebe, era rude e mau.
No deserto, Davi ficou sabendo que Nabal estava tosquiando as ovelhas. Por isso, enviou dez rapazes, dizendo-lhes: 
─ Levem minha mensagem a Nabal, em Carmelo, e cumprimentem-no em meu nome. Digam-lhe: "Longa vida para o senhor! Muita paz para o senhor e sua família! E muita prosperidade para tudo o que é seu! Sei que você está tosquiando suas ovelhas. Quando os seus pastores estavam conosco, nós não os maltratamos, e, durante todo o tempo em que estiveram em Carmelo, nada que fosse deles se perdeu. Pergunte a eles, e eles lhe dirão. Por isso, seja favorável, pois estamos vindo em época de festa. Por favor, dê a nós, seus servos, e a seu filho Davi o que puder".
Os rapazes foram e deram a Nabal essa mensagem, em nome de Davi. E ficaram esperando. E Nabal respondeu então aos servos de Davi: 
─ Quem é Davi? Quem é esse filho de Jessé? Hoje em dia muitos servos estão fugindo de seus senhores. Por que deveria eu pegar meu pão e minha água, e a carne do gado que abati para meus tosquiadores, e dá-los a homens que vêm não se sabe de onde?
Então os mensageiros de Davi voltaram e lhe relataram cada uma dessas palavras. Davi ordenou a seus homens: 
─ Ponham suas espadas na cintura!
Assim eles fizeram e também Davi. Cerca de quatrocentos homens acompanharam Davi, enquanto duzentos permaneceram com a bagagem. Um dos servos disse a Abigail, mulher de Nabal: 
─ Do deserto, Davi enviou mensageiros para saudar o nosso senhor, mas ele os insultou. No entanto, aqueles homens foram muito bons para conosco. Não nos maltrataram, e, durante todo o tempo em que estivemos com eles nos campos, nada perdemos. Dia e noite eles eram como um muro ao nosso redor, durante todo o tempo em que estivemos com eles cuidando de nossas ovelhas. Agora, leve isso em consideração e veja o que a senhora pode fazer, pois a destruição paira sobre o nosso senhor e sobre toda a sua família. Ele é um homem tão mau que ninguém consegue conversar com ele.
Imediatamente Abigail pegou duzentos pães, duas vasilhas de couro cheias de vinho, cinco ovelhas preparadas, cinco medidas de grãos torrados, cem bolos de uvas passas e duzentos bolos de figos prensados, e os carregou em jumentos. E disse a seus servos: 
─ Vocês vão na frente; eu os seguirei.
Ela, porém, nada disse a Nabal, seu marido. Enquanto ela ia montada num jumento, encoberta pela montanha, Davi e seus soldados estavam descendo em sua direção. E ela os encontrou. Davi tinha dito: "De nada adiantou proteger os bens daquele homem no deserto, para que nada se perdesse. Ele me pagou o bem com o mal. Que Deus me castigue, e o faça com muita severidade, caso até de manhã eu deixe vivo um só do sexo masculino de todos os que pertencem a Nabal"!
Quando Abigail viu Davi, desceu depressa do jumento e prostrou-se perante Davi com o rosto em terra. Ela caiu a seus pés e disse: 
─ Meu senhor, a culpa é toda minha. Por favor, permite que tua serva te fale; ouve o que ela tem a dizer. Meu senhor, não dês atenção àquele homem mau, Nabal. Ele é insensato, conforme o significado do seu nome; e a insensatez o acompanha. Contudo, eu, tua serva, não vi os rapazes que meu senhor enviou. Agora, meu senhor, juro pelo nome do Senhor e por tua vida que foi o Senhor que te impediu de derramar sangue e de te vingares com tuas próprias mãos. Que teus inimigos e todos os que pretendem fazer-te mal sejam castigados como Nabal. E que este presente que esta tua serva trouxe ao meu senhor seja dado aos homens que te seguem. Esquece, eu te suplico, a ofensa de tua serva, pois o Senhor certamente fará um reino duradouro para ti, que travas os combates do Senhor. E, em toda a tua vida, nenhuma culpa se ache em ti. Mesmo que alguém te persiga para tirar-te a vida, a vida de meu senhor estará firmemente segura como a dos que são protegidos pelo Senhor, o teu Deus. Mas a vida de teus inimigos será atirada para longe como por uma atiradeira. Quan­do o Senhor tiver feito a meu senhor todo o bem que prometeu e te tiver nomeado líder sobre Israel, meu senhor não terá no coração o peso de ter derramado sangue desnecessariamente, nem de ter feito justiça com tuas próprias mãos. E, quando o Senhor tiver abençoado a ti, lembra-te de tua serva.
Davi disse a Abigail: 
─ Bendito seja o Senhor, o Deus de Israel, que hoje a enviou ao meu encontro. Seja você abençoada pelo seu bom senso e por evitar que eu hoje derrame sangue e me vingue com minhas próprias mãos. De outro modo, juro pelo nome do Senhor, o Deus de Israel, que evitou que eu fizesse mal a você, que, se você não tivesse vindo depressa encontrar-me, nem um só do sexo masculino pertencente a Nabal teria sido deixado vivo ao romper do dia.
Então Davi aceitou o que Abigail lhe tinha trazido e disse: 
─ Vá para sua casa em paz. Ouvi o que você disse e atenderei ao seu pedido.
Quando Abigail retornou a Nabal, ele estava dando um banquete em casa, como um banquete de rei. Ele estava alegre e bastante bêbado, e ela nada lhe falou até o amanhecer. De manhã, quando Nabal estava sóbrio, sua mulher lhe contou tudo; ele sofreu um ataque e ficou paralisado como pedra.
Cerca de dez dias depois, o Senhor feriu Nabal e ele morreu. Quando Davi soube que Nabal estava morto, disse: 
─ Bendito seja o Senhor, que defendeu a minha causa contra Nabal, por ter me tratado com desprezo. O Senhor impediu seu servo de praticar o mal e fez com que a maldade de Nabal caísse sobre a sua própria cabeça.
Então Davi enviou uma mensagem a Abigail, pedindo-lhe que se tornasse sua mulher. Seus servos foram a Carmelo e disseram a Abigail: 
─ Davi nos mandou buscá-la para que seja sua mulher.
Ela se levantou, inclinou-se com o rosto em terra e disse: 
─ Aqui está a sua serva, pronta para servi-los e lavar os pés dos servos de meu senhor.
Abigail logo montou num jumento e, acompanhada por suas cinco servas, foi com os mensageiros de Davi e tornou-se sua mulher.

- I SAMUEL, 25, 2-42.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

PRESENÇA FRANCESA NAS AMÉRICAS

          

A França teve uma participação importante no processo histórico de formação das três Américas, compartilhando os mesmos ideais políticos através de uma sólida relação de respeito e admiração recíproca. 
Este legado cultural secular não pode ser um mero patrimônio esquecido no passado, mas um desafio a inspirar tanto as presentes como as futuras gerações.
No curso da colonização americana o idioma francês foi adotado em algumas colônias insulares do Caribe, onde a França teve maior influência administrativa, como Martinica, San Martín e Haiti, além de boa parte do Canadá e na Guiana Francesa. 
Muitas palavras do francês que usamos no dia a dia, do norte ao sul do grande continente, têm origem no intercâmbio permanente travado ao longo de cinco séculos entre franceses e americanos.
Os primórdios da colonização europeia no continente americano foram marcados principalmente pela competição econômica entre a França, a Inglaterra e a Península Ibérica, através do comércio de matérias primas e da exploração da força de trabalho escravo.
Algumas cidades muito tradicionais da América, como São Luís do Maranhão e Rio de Janeiro, no Brasil, e Nova Orleans, nos Estados Unidos, receberam uma intensa influência cultural dos franceses, desde a fundação até a consolidação como grandes centros urbanos.
Na segunda metade do século XVIII, o desempenho militar da França na guerra pela independência dos Estados Unidos foi decisivo na vitória dos revolucionários de 1776, sacramentando uma sólida amizade histórica entre os dois países. 
Essa relação também vai se refletir no aspecto artístico, onde a criação francesa se fez presente na origem de dois ícones da indústria cultural americana do século XX, oferecendo os elementos básicos para os seu florescimento – o cinema e o jazz.
As conexões entre Brasil e França foram construídas desde o início do século XVI, quase sempre entremeadas pelas circunstâncias da rivalidade com os portugueses. 
Portugal decidiu intensificar a ocupação do litoral brasileiro, estabelecendo fortificações ao longo da costa, muitas vezes em resposta às tentativas francesas de conquistar territórios no Brasil.
Em 1808, quando o rei português João 6º teve que fugir para o Brasil para escapar da invasão do exército napoleônico, a instauração de uma monarquia em solo americano trouxe características muito peculiares ao processo brasileiro de estruturação administrativa. 
Neste contexto histórico específico, ao longo do século XIX, a influência do reino de Portugal logrou manter unida toda a parte oriental do continente sul americano – a chamada América portuguesa – enquanto a parte ocidental espanhola foi fragmentada em diversas repúblicas autônomas.
Ao longo dos últimos quinhentos anos a ação colonizadora francesa na construção das três Américas foi marcada por muitas passagens épicas, algumas vezes contraditórias, mas sempre com grande simbolismo histórico. 
Como o episódio da fracassada tentativa de intervenção monárquica no México em meados da década de 1860. Diante da expansão de vários grupos protestantes republicanos nos Estados Unidos, o governo católico francês tentou implantar um regime monarquista no México, visando restaurar a ordem absolutista anteriormente vigente. 
Entre 1861 e 1865, durante a Guerra de Secessão, quando os Estados Unidos estavam ocupados com sua crise interna, a França aproveitou para agir. Em 1864 Maximiliano de Lorena, irmão do rei da Áustria (que tinha relações próximas com o monarca brasileiro Pedro II), foi persuadido por um plano do rei francês Napoleão III, associado a um grupo de monarquistas mexicanos, a assumir a Coroa do recém fundado Segundo Império Mexicano.
Porém os rebeldes republicanos locais conseguiram se organizar para fazer uma luta de resistência. Assim o México também passou a viver a sua guerra civil. Os Estados Unidos não reconheceram o imperador Maximiliano e exigiram a retirada das tropas francesas do território mexicano. 
Finda a guerra de Secessão nos EUA, com o agravamento da guerra Franco-Prussiana na Europa, o projeto monárquico francês no México desmoronou. Maximiliano acabou preso e condenado à morte por fuzilamento em maio de 1867.
Apesar dos fatores negativos de qualquer processo de colonização, os franceses souberam inicialmente valorizar os costumes e as tradições das regiões silvícolas exploradas na América, sem precisar fazer uma ocupação formal efetiva dos territórios. 
No plano cultural, a França já exercia naturalmente uma influência sobre a Península Ibérica, em atividades diversas como a literatura, o direito, a arquitetura, a música, o cinema, o teatro, as artes plásticas, o esporte, a gastronomia, o vestuário etc.
No início do XX, no auge da Belle Époque, período histórico que vai do fim da guerra franco-prussiana (1871) até o início da primeira grande guerra mundial (1914), a França viveu o seu apogeu civilizatório, despontando como a principal referência para  os demais centros urbanos do mundo.
Com uma expansão colonial mais agressiva na África e na Ásia, a denominada Terceira República Francesa foi marcada pelo sentimento de otimismo, iluminismo, romantismo, paz regional e prosperidade econômica, dentro de uma nova realidade internacional repleta de inovações tecnológicas, científicas e culturais.
Finalmente, nosso estado de Minas Gerais, que nutre uma relação particular com o gigante europeu. Nossa bandeira, símbolo da Inconfidência Mineira, é uma referência aos ideais revolucionários franceses de 1789, de culto à liberdade política e de respeito à tripartição dos poderes do Estado. 
Muito além da paixão pelos vinhos e pelos queijos, os mineiros firmaram com os franceses uma identificação e um compromisso pela preservação de valores culturais históricos, que estão na base da nossa formação ética e humanística.
Ligados por uma parceria estratégica, a França e as três Américas empreendem atualmente uma ação convergente nas relações internacionais, como atores globais que cultivam os mesmos princípios democráticos e a mesma ambição de construir um mundo mais justo, livre, fraterno e culturalmente diversificado.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

H E N F I L

Mineiro de Ribeirão das Neves, Henrique de Sousa Filho ─ o Henfil ─ nasceu em 5 de fevereiro de 1944, passando sua infância na periferia de Belo Horizonte. Estudou no Colégio Arnaldo da Ordem do Verbo Divino e mais tarde cursou um supletivo noturno, para em seguida entrar para a faculdade de Sociologia.
Logo abandonou o curso e foi trabalhar como embalador de queijos, office-boy e depois acabou se tornando jornalista. No início da década de 1960 passou a se dedicar à ilustração, criando diversos personagens e histórias em quadrinhos. 
Em 1964 começou a publicar na Revista Alterosa, a convite do editor e escritor Roberto Drummond, que lhe deu emprego e também o apelido. Nesta época nasceram os "Fradinhos", um desenho satírico com figuras tipicamente brasileiras, que retratava a situação do país naquele período crítico de regime militar.
Nos anos seguintes passou a fazer caricatura política para o Diário de Minas e charges esportivas para o Jornal dos Sports do Rio de Janeiro, colaborando também nas revistas Visão, Realidade, Placar e O Cruzeiro. 
Em 1969 Henfil mudou-se para o Rio de Janeiro e começou a publicar no tabloide O Pasquim e no Jornal do Brasil, quando seus personagens ganharam popularidade nacional. 
Atuou também no teatro, cinema, televisão e literatura, tendo uma participação marcante nos movimentos políticos e sociais no período de redemocratização do Brasil. 
A partir de 1980 passou a morar em Nova York por motivo de saúde, para tratar de hemofilia. Daí surgiu o livro "Diário de um Cucaracha", que retrata o período da sua passagem pelos Estados Unidos.
Chegou a publicar algumas das suas tiras mais famosas em jornais dos EUA, mas os norte-americanos não conseguiram compreender o seu peculiar senso de humor sarcástico. 
Ao retornar ao Brasil, passou a viver na cidade de Natal, onde produziu o filme “Tanga ─ Deu no New York Times”. De volta ao Rio de Janeiro, criou um quadro dentro do programa TV Mulher na Rede Globo ─ a TV Homem ─ que teve grande repercussão. 
Como escritor publicou 7 livros: "Diário de um cucaracha", "Hiroshima, meu amor", "10 em humor", "Diretas-já", "Henfil na China", "Fradim de Libertação" e "Como se faz humor político".
Henfil teve um papel relevante na produção e na renovação do desenho humorístico brasileiro, através de personagens como Capitão Zeferino, Graúna, Bode Orelana, entre outros. 
Sua participação na vida política do Brasil foi marcada pelo engajamento na luta contra a ditadura, em favor da democratização, especialmente do movimento pela anistia aos presos políticos (1979) e pelas Diretas-já (1984). Faleceu em 4 de janeiro de 1988, vítima do vírus HIV contraído em uma transfusão de sangue no tratamento da hemofilia.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

A NOITE ANTERIOR by Standard/T

Em 18 de fevereiro de 1964 os Beatles e o ainda Cassius Clay tiveram um encontro promocional em Miami. O quarteto inglês fazia sua estreia nos Estados Unidos, enquanto o jovem pugilista estava prestes a se tornar campeão mundial e em seguida mudar o seu nome para Muhammad Ali. A trilha sonora é de Tommaso Pacchioni & Alister Vicani interpretando The night before de Lennon & McCartney. Na foto final Lennon (com Yoko Ono) e Ali se reencontram no jantar de posse do presidente Jimmy Carter em 1977.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

ABDIAS, INTÉRPRETE DO BRASIL


Abdias Nascimento é uma figura central na luta contra o racismo e nos movimentos negros do Brasil, como podemos ver tanto em seus textos republicados quanto nas recentes exposições de sua obra artística. A reedição de obras marcantes, como Genocídio do negro brasileiro e Quilombismo, trouxe ao público contribuições fundamentais dele, que certamente se tornaram clássicos. 
No entanto, ainda há a necessidade de uma análise mais ampla que considere toda a trajetória de Abdias. Este livro tem como objetivo apresentá-lo como um intérprete do Brasil. Apesar de suas posições e contribuições, esse resgate contemporâneo de Abdias ainda não o colocou no panteão dos grandes pensadores sociais do país. 
Até agora, ele tem sido visto mais como uma “caixinha particularista do ethnos”, voltada aos intelectuais e pensadores negros, como um recorte específico, pois sua contribuição é muitas vezes associada apenas à questão racial. No entanto, falar do Brasil, de seus sonhos, medos e projeções, é inevitavelmente falar de raça. 
Desde o século XIX, qualquer debate sobre os destinos, as identidades e os projetos nacionais do Brasil passou pela questão racial. Muitos dos nomes considerados pilares do pensamento brasileiro, como Joaquim Nabuco, Oliveira Vianna, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, também abordaram a racialidade para refletir sobre o destino e o sentido do país. 
Assim, resgatar o pensamento de Abdias Nascimento busca evidenciar sua importância como referência para compreender o Brasil a partir do século XX, uma perspectiva que está diretamente ligada ao seu engajamento político e às suas ações enquanto intelectual.