Luís Guilherme S. Etienne Arreguy
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sexta-feira, 12 de setembro de 2025
segunda-feira, 8 de setembro de 2025
CANTIGA DE ESPONSAIS (Conto de Machado de Assis)
Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos.
Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção.
Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. "Quem rege a missa é mestre Romão" ─ equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano" ─ ou então: "O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias". Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa!
Quem não conhecia mestre Romão, com seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar ascendia-se, o riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele, esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria se a missa fosse sua.
Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.
─ Mestre Romão lá vem, pai José ─ disse a viazinha.
─ Eh, eh! Adeus, sinhá, até logo.
Pai José deu um salto, entrou em casa e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar de costume. A casa não era rica, naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jacundas.
Casa sombria e nua. O mais alegre era o cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele...
Ah! Se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação: as que têm língua e as que não a tem. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação entre os homens.
Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais que não alcançava exprimir e por no papel. Esta era a causa única da tristeza de mestre Româo. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo; doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo...
Mas a verdade é esta: a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem ideia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.
E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração.
Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pode sair. Como um pássaro que acaba de ser preso e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada.
Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as, obra de uma folha de papel, não mais. Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essa primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fazer fixar no papel a sensação de felicidade extinta.
─ Pai José ─ disse ele ao entrar ─ sinto-me hoje adoentado.
─ Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...
─ Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica...
O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre Romão não se sentia melhor. É preciso dizer que ele padecia do coração: moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado quando viu que o incômodo não cedera ao remédio nem ao repouso e quis chamar o médico.
─ Para quê? ─ disse o mestre ─ Isto passa.
O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal pode dormir duas horas. A vizinhança apenas soube do incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no gamão ─ outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.
─ Está acabado ─ pensava ele.
Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras:
─ Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas...
Em músicas! Justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo e não concluídas. E então teve uma ideia singular: rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.
─ Quem sabe? Em 1880 talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...
O princípio do canto rematava com um certo LÁ; este LÁ, que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.
─ Aqueles chegam ─ disse eles ─ eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...
Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao LÁ...
─ LÁ, LÁ, LÁ...
Nada, não passava adiante. E, contudo, ele sabia música como gente.
LÁ, DÓ... LÁ, MI... LÁ, SI, DÓ, RÉ... RÉ... RÉ...
Impossível! Nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original, mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho de sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos...
Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o lado dos casadinhos. Estes continavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo. Mestre Romão, ofegante da moléstia e da impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe supria a inspiração e as notas seguintes não soavam.
─ LÁ... LÁ... LÁ...
Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo LÁ trazia após si uma linda frase musical, justamente a que Mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca.
O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.
*Extraído do livro Histórias sem data.
quarta-feira, 27 de agosto de 2025
INVERSÃO DE VALORES
A aliança com as máfias clandestinas ─ incluindo, é claro, as "religiosas" ─ sempre foi uma condição inerente (sine qua non) aos métodos políticos da extrema-direita. Um sinal explícito deste conluio é a própria ideologia da negação do Estado, concretizada em ações de sabotagem aos poderes públicos.
Há vários exemplos históricos dos reflexos que esta parceria macabra, seja no governo ou na oposição, pode provocar. A simpatia da população do sul estadunidense por figuras como Bonnie e Clyde, naqueles tempos cruciais da década de 1930, é um tipo de sintoma sociológico desta deturpação.
No Brasil o governo recorreu a grupos de cangaceiros para tentar rebelar a Coluna Prestes que peregrinava pelo interior do Nordeste. Outra referência sombria é a associação da polícia e do exército com o chamado “esquadrão da morte” na época da ditadura militar.
O mais cruel deste fenômeno ─ pode-se dizer também o mais revelador ─ é que esses “revoltados” da direita radical "anti-Estado" estão envolvidos até o pescoço com a estrutura estatal injusta e corrupta.
De fato é tentadora e muitas vezes justa uma posição contra os governos em geral; como diz o famoso ditado anarquista, "hay gobierno, soy contra". Mas esta conduta não pode ser uma estratégia nefasta de inversão de valores, em boicote à ordem pública e aos ditames da lei.
Em nome de uma falsa moral sustentada por slogans vazios como "Deus, pátria e família", o objetivo da extrema-direita é corromper a hegemonia da legalidade e da Constituição, minando os valores da democracia e, consequentemente, o bom convívio entre as pessoas, com estímulo ao ódio, à violência e ao desequilíbrio social.
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